06 junho, 2024

O caso da Triagem no Hospital de Viana - o outro lado da moeda


Há 1 ano que cá não vinha. Por variadíssimas razões que talvez um dia as enumere.

Hoje regresso porque o tema seguinte não me sai da cabeça:

Há cerca de 2 semanas morreu um homem com um Enfarte Agudo do Miocádio, no Serviço de Urgência do Hospital Santa Luzia - Viana do Castelo. Tinha sido triado com pulseira verde (tempo máximo de espera - 2 horas) e após cerca de 3 ou 4 horas de espera (as noticias divergem neste ponto)  na Sala de Espera, é levado para a Sala de Emergência, acabando por falecer após algumas horas de tentativa de reanimação. (Consultar a noticia para outros pormenores no link)

E não me sai da cabeça porquê?

Porque aconteceu no meu Hospital, da minha cidade. Porque fiz parte daquela equipa de enfermagem e porque, de alguma forma, quem trabalhou na equipa de enfermagem deste Serviço de Urgência, continuará a pertencer-lhe, pelas experiências, pelas relações, pelas aprendizagens e pelas amizades.

Porque, de alguma forma, senti que o que se passou com a colega que triou este senhor, poderia ter-se passado comigo, durante as milhares de horas de triagem que fiz. 

O que ela sente e vive no presente e que possivelmente a perturbará no futuro, poderia ser o mesmo a qualquer um de nós, enfermeiros que triam e triaram. 

Porque a Triagem de Manchester sempre foi um tema-alvo das minhas reflexões. Foi tema aqui neste Blog (O caso do enfermeiro de Leiria, visto por mim), onde uma situação semelhante a esta aconteceu e varias vezes tema também, no primeiro Blog Porque deixei de ser enfermeiro , (ver etiquetas "Triagem de Manchester" na coluna direita). Revisito essas passagens e reparo que o passado é também actual, os problemas mantêm-se.

E porque reparo, alguma imprecisão e ignorância nas notícias e as mesmas adicionadas à crueldade e injustiça nas redes sociais, principalmente para com a enfermeira.

Em primeiro lugar, como cidadão e como profissional de saúde, devo lamentar esta morte e endereçar sentidas condolências aos familiares. 

Não me parece que haja dúvidas que houve uma falha grave, porém, como é claro, não me pronunciarei aqui sobre esta por vários motivos: existe um processo de inquérito a decorrer, desconheço a realidade dos factos e porque já ouvi mais que uma versão dos acontecimentos. 

E, quando desconheço a realidade dos factos e quando ouço apenas uma ou mais diferentes versões dos acontecimentos, calo-me, para não dizer disparates. O mesmo deveriam fazer os comentadeiros de redes sociais, mas como sabemos, isso é quase impossível, porque pela internet rareia o bom senso e o filtro.

Por conseguinte, o meu único papel aqui é procurar ajudar a desmontar algumas ideias erradas sobre a Triagem de Manchester e não só, ao cidadão comum e porventura a alguns profissionais de saúde.

A Triagem de Manchester é, na minha opinião e na de muitos outros profissionais de saúde, sejam médicos ou enfermeiros, um sistema imperfeito e falível.

O conceito e o método da Triagem de Manchester são bons, diria até ótimos e são os indicados para o contexto de um Serviço de Urgência, porém ao longo destes últimos 20 anos de implementação deste sistema, várias foram as vezes, que em equipa, discutíamos algumas lacunas do sistema. Algo poderia escapar, passar despercebido. 

Tanto assim é, que são frequentes os casos de falhas na Triagem. Uns tornam-se mediáticos pelos contornos de gravidade extrema, mas muitos outros acabam por passar despercebidos.

De uma forma resumida, a Triagem de Manchester é um sistema ultra rápido de atribuição de prioridades, onde o enfermeiro vai colocando ao utente algumas questões simples em torno das queixas que este menciona. O utente poderá não estar capaz de responder e nessa situação, o mais provável é alguém responder por ele.

Mediante as suas respostas e através de uma visualização do utente pelo enfermeiro, vai-se "descartando" cores (das prioridades), parando logo à partida num vermelho (emergente) ou descendo até um azul (não urgente).

Reparem que se trata de uma mera "visualização" rápida. Não é, repito, não é uma observação minuciosa, uma avaliação rigorosa, pois estas apenas poderão ser efetuadas à posteriori, numa sala de observação, sala de tratamentos, consultório médico, sala de Emergência, etc, quer pelo médico e/ou quer pelo enfermeiro. 

Portanto, a ideia de que ali na Triagem se iria "ver o historial" e os antecedentes familiares do senhor, como a sua familiar se questiona em entrevista, é no mínimo muito pouco provável. 

O enfermeiro poderá eventualmente, em bom rigor, no caso de uma queixa evidente e explícita de dor torácica, questionar quais os antecedentes pessoais e familiares do utente para melhorar a informação, porém à partida isso nem irá condicionar a sua decisão, porque basta uma queixa evidente e explicita de dor torácica, para que a pulseira seja urgente ou muito urgente, ou seja, amarela ou laranja, ou seja 60 mnts ou 10 mnts de espera máxima e acima de tudo, perante esta queixa, aciona-se uma Via Verde coronária, onde rapidamente é efetuado um eletrocardiograma e despistado um evento cardíaco.

Agora, terá havido uma queixa evidente e explícita de dor torácica? 

Não sei. O ou os inquéritos apurarão.

Continuando com a definição resumida de Triagem de Manchester:

A escala de dor, a frequência cardíaca, oximetria de pulso, temperatura e glicemia são aqui os únicos parâmetros concretos que nos auxiliam e conduzem para uma prioridade final. E não, a tensão arterial nunca é avaliada na Triagem, como a mesma familiar da vítima equacionou.

E terminando toda a teoria rápida sobre Triagem de Manchester, há um sexto sentido que alguns, em determinadas ocasiões, podem ter. 

O que é que quero dizer com isto? 

Por exemplo, por vezes chegava um utente ao Serviço de Urgência com uma determinada queixa, que pelo algoritmo da Triagem de Manchester, lhe era atribuída uma prioridade pouco urgente, mas por acaso o enfermeiro que estava a triar até era experiente e estava concentrado, não estava exausto e irritável. E até achava que apesar da queixa leve, algo de errado se passava com aquela pessoa. E lá encontrava forma de "adulterar" o sistema de Triagem e atribuía-lhe uma prioridade mais alta ou até era reconhecido pelo médico e pedia-lhe diretamente para que observasse o utente rapidamente. E assim se ajudou a salvar algumas vidas, não tenho dúvidas disso.

Portanto, a ideia de que o enfermeiro não é capaz de triar e melhor fosse o médico, é completamente errada e injusta. 

A competência para "exercer" Triagem de Manchester é validada por um curto curso estruturado mediante diretivas internacionais  e direcionado para médicos e enfermeiros , mas que a quase ou totalidade dos médicos nada quer, nem nunca quis, com ela. 

Não digo que os médicos não seriam capazes de triar, claro que seriam, o que digo é que os enfermeiros são os melhores a interpretar os sinais que o utente nos dá, os verbais, os não verbais, a expressão corporal e facial, além de todos os dados objetivos.

E porquê? Porque além da formação, têm a experiência, pois estão em permanência, 24 sobre 24 horas, à frente do utente, nos internamentos, nas Salas de Observação, etc

As notícias, os testemunhos e os comentários de internet apontam apenas um dedo - para a enfermeira, mas parece a todos escapar um pormenor que poderá ser um pormaior. A enfermeira atribuí um tempo máximo de espera de 2 horas, porém o utente esperou 3 a 4 horas na Sala de Espera, ou seja, possivelmente quase o dobro do expectável. O que significa que, a ter havido falhas, não poderão ser apenas imputadas à enfermeira, mas também ao médico que não chamou o utente dentro do limite de 2 horas ou ao sistema entupido que não permitiu que os médicos chamassem o utente dentro daquele período.

Para terminar a desmontagem de falso conceito de muitas pessoas,  refletido no testemunho da familiar da vítima, ao referir que no momento da reanimação, "vieram médicos de todos os lados", devo dizer que não eram só médicos que vinham de todos os lados.

Vieram médicos e enfermeiros de todos os lados, porque naquela sala estariam médicos e certamente enfermeiros e muito provavelmente estariam mais enfermeiros do que médicos. Não estou a querer afirmar que a quantidade é primordial. Naquela sala, enfermeiros e médicos trabalham num conceito de equipa, mediante a liderança de um médico.

Mas (novamente) a Triagem é imperfeita e falível.

Vejamos: o meu chefe fazia (e provavelmente ainda faz) um tratamento estatístico de todos os resultados dos enfermeiros que triavam. Conseguia saber, por exemplo, num período de um mês, quais os enfermeiros que "davam" mais verdes e os que "davam" mais laranjas. Os resultados eram francamente díspares. 

O que significa isto? Os estatísticos diriam que a triagem não é uma ciência exata, não existe um padrão. O que para mim é um alho, para o outro pode ser um bugalho.

Com tudo isto, não estou a querer ser o advogado da colega, apenas estou a defender o lado da enfermagem. O outro lado da moeda. 

A enfermagem por si, é uma profissão de risco e penosidade elevada o que conduz ao aumento da probabilidade de erro. 

Não sou eu que o digo, são os estudos científicos e não estou a querer dizer que foi isso o que aconteceu, porque, mais uma vez, isto não se trata de "desvendar" erros ou falhas.

Sejam sensatos, sejam justos e acima de tudo sejam solidários.

Abraço de força para a colega!

2 comentários:

  1. Anónimo7/6/24 08:59

    E Então desde o hospital e com os dados do paciente não teem acesso à sua história clínica para poder ver antecedentes/ comorbilidades? Surreal. Quanto aos dados vitais, esses são de pouca ajuda. E, mesmo que o método de Manchester tenha falhas, qualquer método o tem, por isso a decisão final e sempre do profissional. Tive um paciente entrando pelo seu pé pondo as mãos no peito com uma dor de uma hora de evolução e não lhe tomei nem uma tensão: meti-o logo na cama e adivinha EAM hiperagudo! Tive muitas companheiras a suspirar queixando-se de que era demasiado precavido; a questão e mesmo essa: descartar que a clínica suponha uma situação urgente: se é perfeito e senão óptimo para o paciente.

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  2. Anónimo8/6/24 18:07

    Por ser uma profissão de risco e penosidade, nunca se deveriam aceitar horários de 12 e mais horas (apenas em casos muito excepcionais) como vi tanta vez colegas aceitarem de bom grado...o risco de erro ( e não estou a dizer que seja o caso), aumenta substancialmente.

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