26 julho, 2021

O caso do enfermeiro de Leiria, visto por mim.


Para quem não sabe da notícia, foi alvo de um processo disciplinar, com multa, um enfermeiro do Centro Hospitalar de Leiria, por ter atribuído a prioridade (pulseira) amarela a um utente que recorreu ao Serviço de Urgência deste Centro por dor torácica e que acabou por falecer com um enfarte, após 6 horas de espera, quando a prioridade amarela estipula um tempo máximo de espera de 1 hora.
Na eventualidade de alguém próximo à vítima ler este post, ficam desde já as minhas sentidas condolências por este infeliz e lamentável evento, que entristece, julgo poder dizê-lo, toda a classe de enfermagem.


Fiz milhares de horas na Triagem de Manchester, triei dezenas de milhares de queixas ao longo de vários anos. Eu e muitos como eu.
A triagem foi tema de vários desabafos na primeira era deste blog. Os posts "Contrariedades na Manchester" e "Só mais uma coisinha Sr. Bastonário", já nessa altura tocavam no assunto de hoje, entre outros.
É um assunto muito delicado e complexo, mas julgo ter a experiência e a legitimidade para que o possa comentar, ao contrário de muitos que gostam de achar, sem nunca ter triado, nem saber como "funciona" a Triagem de Manchester.
Como exemplo temos o Sr. Dr. Carlos Cortes, presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos que, segundo a noticia da tvi24, disse que tendo em conta as queixas do paciente, “era uma situação para ser atendido imediatamente” e que “não querendo avançar com qualquer hipótese sobre a forma como foi feita a triagem de Manchester (…)”.
Absurdo será uma critica leve para o que este senhor acabou de dizer aos meios de comunicação social, numa tentativa baixa e vil de culpar logo à partida o enfermeiro, não fazendo qualquer referência, pelo menos neste artigo, ao principal responsável, que é o médico (ou porventura os médicos). Tanto é que foi suspenso do Hospital.
E absurdo porquê? Primeiro refere “tendo em conta as queixas do paciente” e depois diz “não querendo avançar com qualquer hipótese sobre a forma como foi feita a triagem de Manchester”. Mas então em que é que ficamos? É completamente contraditório o que diz. Sabe ou não sabe o detalhe da triagem? Sabe como o utente classificou e caracterizou a dor? Estava lá? Afinal não quer avançar com qualquer hipótese. Se está a falar de hipóteses é porque não sabe merda nenhuma do que é que aconteceu.


Estive no início da implementação da Triagem de Manchester.
Recordo as polémicas e os dissabores de muitos médicos ao perceberem que iria ser um enfermeiro a decidir a prioridade do utente e se este iria para a área da sua competência, ou não.
Recordo que no início tudo aquilo nos inchou o peito, pois sentia-se um pouco mais de “poder” e autonomia.
Lembro-me de pensar que os enfermeiros é que de facto estavam mais preparados e capazes para aquela difícil tarefa e havia muitos enfermeiros que a executavam exemplarmente.
Mas tudo aquilo foi um presente envenenado.
A triagem era e é um perigo constante!
Várias foram as vezes que pensei e temi que isto que está a acontecer ao colega de Leiria, poder-me-ia acontecer. A mim e a qualquer um dos meus colegas de serviço.
Passei entre os pingos da chuva.
Hoje, felizmente já lá não estou, já não corro riscos. Só por isso, já poderei dizer que estou solidário com ele.


Quase tudo me leva a querer que este colega não errou mas, mesmo a ter errado, o que é possível, estou igualmente e totalmente solidário com ele.
E porquê?
Só quem tria é que sabe o que é a pressão de um utente para aumentar uma prioridade quando não faz qualquer sentido.
Só quem tria é que sabe o que é a pressão do segurança/porteiro/administrativo, que por sua vez está a ser pressionado lá fora, na sala de espera
Só quem tria é que sabe o que é a pressão de um médico quando entra na sala de triagem, mesmo com outros utentes e familiares lá dentro, a vociferar contra o enfermeiro por ter dado uma prioridade alta ou encaminhado um utente para ele, quando já tinha tantos outros para observar (ou não) e mesmo sem fazer a mínima ideia do que são os fluxogramas de triagem. Era como se fosse um economista a criticar e protestar com um arquiteto sobre um desenho para uma casa.
Só quem tria é que sabe o cansaço que existe, quando se decide sobre dezenas, atrás de dezenas de queixas, sinais e sintomas, horas atrás de horas.
Todos as áreas e postos de trabalho de enfermagem levam ao desgaste rápido, está estudado, mas durante a minha experiência de Urgência foi unânime a opinião de que a Triagem de Manchester era dos postos de trabalho mais desgastantes.
Tudo isto leva ao erro. 
Se foi esse o caso, não sei.
Nem sei, nem sabemos o que aconteceu com detalhe.
Estamos no perigoso campo das hipóteses a evitar as especulações.
Mas algumas coisas sei e sabemos:

1. O enfermeiro de Leiria atribuiu uma prioridade amarela, cujo tempo máximo de espera é de 1 hora. O utente esperou 6 horas. Morreria se tivesse sido observado dentro de 1 hora? Talvez sim, talvez não, nunca se saberá. Poderíamos ficar por aqui para absolver o enfermeiro.

2. Como disse, não sabemos de que forma a vítima classificou e caracterizou a dor, mas sabemos que uma queixa de dor torácica pode dar uma prioridade verde, ou seja, até 2 horas de espera. O sistema permite. Pelo menos no meu tempo era assim. Se é certo ou não que permita, isso já é outra história.

3. O que quero dizer com isto é que o sistema permite que uma dor torácica seja urgente (amarela) ou pouco urgente (verde) e que não seja apenas muito urgente (laranja) e emergente (vermelho).

4. Há utentes com dor torácica, que posteriormente se constata ser de causa cardíaca que, numa fase de triagem, sem qualquer auxílio de meios de diagnóstico, ninguém diria que o fosse. Por vezes o utente pode até dizer que não tem dor naquele momento e que a dor que teve foi ligeira, mas efetivamente pode estar a enfartar.

5. Há utentes que exageram nas manifestações e outros que as atenuam.

6. Um quadro de ansiedade pode provocar dor torácica.


Repito, todos estes pontos nada têm a ver com a situação em concreto, são apenas pontos de análise e pontos que decorrem da minha experiência enquanto triador.
Desconheço se a Ordem e os sindicatos se pronunciaram e agiram sobre este assunto. Se não o fizeram, acho que o deveriam fazer. Este colega merece uma defesa justa, pois poderia ser qualquer um de nós. Espero que ultrapasse tudo isto, que a verdade seja alcançada e que tenha uma carreira repleta de sucesso.

1 comentário:

  1. Concordo plenamente com o que está escrito, só quem não tria é que não sabe o stress que é. Mas o jornalixo que temos neste momento em portugal pago por este desgoverno chulo, hipócrita, mentiroso e manipulador com por vezes laivos ditatoriais convém esta meia notícia, meia verdade, mais tendo os enfermeiros sempre e agora na pandemia um papel insubstituível e primordial e estando a ter cada vez mais protagonismo nada menhor para este governo sabujo um desvio para tentar denegrir uma classe, não só um seu profissional, todos sabemos como a saúde mexe no intímo das pessoas.

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